27 de julho de 2014

Por um novo Trilho

A Ilha de Santa Maria não necessita de uma associação de caçadores grande, que reúna um número elevado de praticantes, mas sim de um grupo organizado, coerente e funcional de pessoas esclarecidas, que saiba exactamente o que se pretende, que trabalhe para esse fim em conjunto e que proceda em conformidade.
Que seja capaz de buscar, estabelecer e manter parcerias com as diversas entidades públicas e privadas que se movimentam na mesma esfera de interesses, sejam eles interesses partilhados ou contrários.
Santa Maria necessita de uma entidade que nos represente e, através da qual, possamos agir e participar publicamente.

26 de julho de 2014

Caiu de Podre

A Ilha de Santa Maria não tem associação de caçadores.
Já teve, mas era ineficaz.
Os caçadores, enquanto membros activos da sociedade civil, têm o dever de contribuir para um melhor ambiente e para a sustentabilidade de todas as espécies animais, de investir na sensibilização, na formação em matérias de conservação ambiental, na utilização racional dos recursos cinegéticos, na adopção de medidas e comportamentos de segurança e em de boas práticas no exercício da caça.
Nunca teve a associação de caçadores da Ilha de Santa Maria essa consciência. 
Se a possuiu também nunca a demonstrou.
Uma associação onde era bem mais importante a encomenda de cartuchos e estoura-los, mais não lhe restava do que cair por si mesma e sobre si própria, de podre. 

24 de julho de 2014

O Posicionamento do Caçador Moderno

No início deste novo século nos deparamos com três desafios monumentais, sendo eles provenientes das novas tecnologias aplicadas à caça, a sustentabilidade das espécies e o posicionamento do caçador na sociedade.
Nas linhas que se seguem abordarei precisamente este último, por considerar depender dele a solução dos restantes.
A tarefa não se nos afigura fácil quando, em face da incompreensão a que somos votados, nos recolhemos e fechamos em copas perante uma oposição que se apresenta determinada contra a actividade venatória e nos acusa de egoísmo e da prática de alegados comportamentos marginais, através duma estratégia que, na falta de reacção, os faz ganhar adeptos e influência.
Temos a responsabilidade de alterar esta tendência e o devemos fazer participando activamente na comunidade, pois se hoje nos encontramos em clara desvantagem foi precisamente porque abdicamos dessa prática algures no percurso.
A verdade é que num determinado momento nos distanciamos da sociedade, a qual, por via desse fosso e auxílio dos delatores, deixou de nos reconhecer e acabou por esquecer o mérito da nossa contribuição.
Nestas condições pouco ou nada temos recebido para além da indiferença, da incompreensão e da rejeição.
Podemos começar por identificar nas forças vivas mais próximas, sobretudo nas freguesias e nos concelhos onde caçamos, interesses comuns e procurando executa-los em conjunto, com o objectivo de criar parcerias duradouras.
Não bastam as boas ideias, que até existem e que se vão praticando um pouco por todo o país, mas há que enquadra-las nos planos de gestão e de desenvolvimento dos municípios.
Será no estabelecimento e na administração desses interesses comuns, que se deve posicionar o novo caçador, para recuperar e reforçar os laços perdidos.
Relativamente à sustentabilidade da fauna selvagem, receia-se a contínua deterioração dos habitats e o contínuo decréscimo das populações animais, porém depositam-se esperanças na descoberta de tratamentos eficazes para a diversidade das moléstias que afectam as espécies cinegéticas. Por outro lado teremos acesso a tecnologias de elevada precisão, adaptada aos mecanismos de pontaria e munições, em que o sucesso do disparo deixará de depender da habilidade ou da destreza do atirador desvirtuando totalmente a essência da caça.
Os novos tempos estão aí e preparam-se para nos apresentar desafios de tão grande complexidade que nos farão debater profundamente princípios e procedimentos que temos agora por imutáveis.
Cabe-nos, enquanto caçadores, a responsabilidade de analisar tudo isto e de promover uma séria discussão interna, num processo que deverá ser dinâmico e atento aos constantes desenvolvimentos, mas sempre no firme pressuposto da defesa e integração do caçador português na sociedade do séc. XXI.

Retrato da autoria de Francisco Charneca

19 de julho de 2014

A Componente Social da Caça

É sempre um prazer enorme responder a um desafio do amigo Vítor Palmilha.
Participar mais uma vez com um testemunho de caça em mais uma edição da Feira de Caça, Pesca e do Mundo Rural do Algarve é um privilégio. Uma iniciativa deste género merece todo o nosso apoio e carinho, já que envolve uma componente cultural, social e económica, muito importante. É também com eventos como este que se teima em manter vivo o Mundo da caça no nosso País.
A caça desde sempre faz parte da vida da humanidade neste Planeta. É verdade que as suas funções tem evoluído e mesmo se transformado, mas mesmo nos dias de hoje quando praticada com ética, com segurança, com desportivismo, com amizade, respeito pela natureza e dos animais, mantém intacta a sua génese e é um ato de cultura.
Numa fase da vida e da história muito complicada e pautada por múltiplas dificuldades vale a pena fazermos todos os esforços e até mesmo sacrifícios para não deixarmos morrer esta nossa paixão por tudo o que envolve a cinegética. Os cães, os furões, as armas, os amigos, as espécies cinegéticas, as provas de Santo Huberto, a gastronomia, a partilha de lances e emoções, a descoberta do meio ambiente, as recordações e as feiras de caça, são elementos complementares da arte de saber e viver a caça. De todos estes aspetos relevo hoje a gastronomia cinegética como elemento aglutinador da componente social da caça. A gastronomia cinegética é amiga da Paz.
Quando me é apresentado um caçador “novo”, com o objetivo de caçarmos juntos, uma das primeiras perguntas que lhe faço, é se tem ou não tem navalha, porque a resposta quase sempre é bem definidora se estou na presença de um caçador que valoriza a componente social da caça ou não. Razão porque faço-me sempre acompanhar pelo menos de duas navalhas, na esperança de converter mesmo aqueles que nunca pensaram que este simples gesto de ter ou não ter navalha pode significar uma linha que separa um caçador de um “ caçador “ de ocasião . Nunca é tarde para nos convertermos.
Antes e durante o ato cinegético devemos preparar e exercer estes dois momentos com a maior sobriedade, paixão e rigor, mas uma jornada de caça nunca atinge o seu expoente máximo se não for seguida de um momento de descontração,confraternização e degustação de parte do produto da nossa caçaria, e isto, é verdade na Ilha do Pico, em Beja ou nos longínquos terrenos do Departamento de Flores no Uruguai. Este ritual tão simples de partilharmos uma perna de coelho ou de perdiz grelhada, temperada apenas com sal e regada com um fio de azeite no meio do campo à sombra de um cedro do mato ou de uma azinheira é um património que perpetua a caça e a amizade. Mas os que não tem possibilidade de viver este momento alto da caça, resta-lhes sempre a alternativa de comungar com os familiares e amigos o produto da caça no seu Clube, num Restaurante, ou, mesmo na sua casa. E que maravilhas de pratos de gastronomia de caça menor ou caça maior se podem fazer hoje com as diferentes espécies cinegéticas. Desde o pequeno tordo ou a narceja até ao javali podem-se confeccionar pratos dos mais simples até aos mais sofisticados e dignos da alta cozinha mundial e dos mais reputados cozinheiros (Chefs).
Tenho tido a felicidade e sempre acompanhado dos meus amigos cães, de ter cobrado as mais variadas espécies cinegéticas e em todas elas descubro um potencial gastronómico fantástico , a sua degustação é invariavelmente um momento alto e complementar do ato da caça. Recentemente disponibilizei um conjunto variado de espécies cinegéticas para um jantar de amigos. A organização esteve a cargo do Gastrónomo Mor dos Açores que é o António Cavaco, que por sua vez desafiou alguns dos mais conhecidos Chefs dos Açores para confeccionarem pratos originais tendo como elemento principal a caça e o resultado foi deveras extraordinário e revelador de um elevado potencial económico.
Termino publicando a receita de um arroz de Pomba-da-Rocha que também pode ser confeccionado com pombos bravos, como forma de incentivo aos amigos caçadores e suas companheiras a descobrirem este Mundo fantástico da gastronomia cinegética.

ARROZ DE POMBA DA ROCHA ( 2 pessoas )

Duas pombas
Chouriço
Bacon
Cebola
Alho
Ramo de cheiros
Sal e pimenta
Chávena e meia de arroz carolino
Depois de amanhadas e lavadas cozem-se as pombas juntamente com o chouriço, bacon, meia cebola, dente de alho, pimenta em grão, dois cravinhos, ramo de cheiros e meia pimenta da terra salgada.
Depois de cozidas desossam-se as pombas e corta-se o chouriço em rodelas e o bacon em fatias e reserva-se. Entretanto num tacho coloca-se uma colher de azeite e um dente de alho e assim que o azeite está quente adicionam-se os miúdos das pombas deixando cozinhar por um bocado, adicionando depois a cebola picada, que se deixa refogar, juntando a seguir o arroz, que se envolve no refogado, o caldo quente, de cozer as pombas, a carne das mesmas desfiada e deixa-se cozer.
Quando está quase pronto deita-se numa travessa de ir ao forno, decora-se com o chouriço, o bacon e azeitonas e vai corar ao forno acabando de cozer.
Gualter Furtado, Caçador Açoriano

Julho de 2014

Texto e foto da autoria de Gualter Furtado
Artigo que escrito a pedido do Vítor Palmilha para ser publicado na Revista integrada na edição deste ano da Feira de Caça, Pesca e do Mundo Rural do Algarve.

16 de julho de 2014

Há Dias Assim

Nas caçadas solitárias é aprazível não ter qualquer obrigatoriedade de seguir por aqui ou por ali, no decurso da jornada; progredir a nosso bel-prazer, parar ou andar, falar em voz alta com os cães, com as peças de caça, ou com as fragas e as árvores. Não ter que interromper o acto, alimentarmo-nos frugalmente com o que a Natureza dá: azedas, amoras e medronhos silvestres; amêndoas, figos, uvas, maçãs, pêras, marmelos, nabos, tomates e outros frutos esquecidos; castanhas, laranjas, tangerinas, honestamente roubadas, mas sem exageros e sem desrespeitar a propriedade alheia. Tudo isto complementado com um indispensável naco de pão, queijo duro e uma fatia de presunto ou uma linguiça. 
Caçar sozinho permite ainda seguir os bandos de perdizes com grande eficiência, dar as voltas de modo a surpreendê-las em silêncio, quando supõem estar resguardadas, sem ter que manter a regularidade de andamento e a equidistância numa linha de caçadores. O caçador solitário precisa, porém, de caminhar muito mais, passar numa encosta e noutra, ziguezaguear, ir a todos os cantinhos... elas podem estar em qualquer um... mas tendo sempre em atenção que de manhã estarão, provavelmente, na cara do Sol.
É certo que também tem os seus inconvenientes. À medida que avança a idade do caçador, reduzem a sua resistência física, os reflexos, o espírito temerário e a ousadia, sendo então necessário e mais conveniente o trabalho de equipa. Pode até ocorrer um qualquer e indesejável acidente, um mal-estar ou quebranto físico que deixe o caçador vulnerável e em situação difícil.
Apesar dos riscos, não deixa de ser interessante, vez por outra, a sensação de liberdade e evasão, o privilégio destes sublimes momentos, quase ascéticos, em paz com o mundo e em harmonia com o nosso íntimo, sentindo-nos parte integrante do território em que nos movimentamos e tendo presente a eloquência das opiniões de alguns grandes pensadores:
(...) «Tudo isto é especialmente verdade na que, a meu juízo, constitui a forma não mais elevada e gloriosa mas mais íntima e clave superior da caça: a caça solitária com cão e espingarda. Nela o homem descansa dos homens, em conviver com os quais consiste o seu habitual viver. Dizia Nietzsche que, se não nos sentimos tão à vontade no meio da natureza, é porque esta não tem opinião sobre nós. E, com efeito, um dos ingredientes deliciosos da caça solitária é que ela interrompe a constante pressão que sobre nós exercem as opiniões e os preconceitos acerca da nossa pessoa.» (...)
Ortega y Gasset - “Sobre a Caça e os Touros”
Naquele Domingo de Dezembro, o gelo na estrada e o nevoeiro não aconselhavam a que viajasse sozinho muito cedo. Os quatro graus negativos obrigaram-no a ser despachado nas operações de meter a tralha e as cadelas no carro. Com todos os cuidados na condução, demorou mais de uma hora a chegar. A camada de gelo, nalguns pontos dos caminhos de terra batida, parecia neve.
Estacionou no largo de uma curva do caminho, num lugar abrigado, com o interessante e sugestivo nome de CÉU...!
Olhou em volta e, respirando fundo o ar frio, pensou no fascínio de tanta luz… aquele azul intenso… o bem que faz ao corpo e ao espírito. Mentalmente, delineou os primeiros passos da caçada, o resto lá se haveria de ver!
Como normalmente faz, em caçadas solitárias, num pequeno saco de pano, pendurado na cartucheira para não estorvar muito, juntou o necessário e suficiente para aguentar a jornada: três “sandochas”, meia-dúzia de figos secos e uns pedaços de marmelada caseira cortada em cubos, embrulhados em prata, infalíveis quando a fraqueza começa a fazer tremer as pernas e a provocar as temidas cãibras. Água pura e límpida está à disposição nalguns ribeiros ou nascentes e há também imensas amendoeiras com os saborosos e nutritivos frutos abandonados, em ladeiras de tal modo íngremes que deixou de ser compensadora a sua colheita, mas que teimosamente permanecem lá, até que um dia o mato as abafe por completo…
− Vamos! Disse para as duas perdigueiras, que reagiram cabriolando entusiasmadas e soprando pelas narinas, em sinal de plena concordância. É a sua maneira de falar!
Atacou a encosta, com calma, subindo em ziguezague, no terreno lavrado de uma jovem plantação com sobreiros e cedros, esperando que “elas” estivessem próximas do topo, depenicando no chão aquecido pelo sol. Lá estavam, de facto! Numa dobra mais abrigada, um bando de oito perdizes mostrou o cor-de-laranja da parte inferior das asas e do abdómen, brilhando em todo o seu esplendor com aquela luz. Divinal! Das duas que voaram para a direita, uma embrulhou ao primeiro e único tiro. Ainda poderia ter tentado o “doble”, mas da forma como levantaram, rasteiras e de baixo para cima, seria pouco aconselhável.
− Lira, busca lá…
Não tinha ficado no ponto da queda, andara uns bons vinte metros e quando as cadelas lhe pegaram no rasto bateu ligeiramente a asa despertando-lhes a atenção. A Lira cobrou-a à vista, vindo trazê-la com o típico orgulho que os perdigueiros exibem nestas situações. Afagou-lhe a cabeça e agradeceu, murmurando palavras que só os caçadores e os seus cães conhecem. Depois de ver que se tratava de um belíssimo perdigão, mostrou-o à mais nova, a Rola, Perdigueiro Português, com “pergaminhos” de raça, oferecida por um amigo caçador havia pouco tempo. Não deixou que o abocanhasse. Seria perda de tempo, uma vez que já tinha demonstrado, logo no primeiro dia, as suas capacidades para o “ofício”, cobrando com grande competência antes da Lira ter tempo de se aproximar.
Ficou sem perceber para o­nde tinha ido o resto do bando, por se terem ocultado na dobra do terreno, portanto havia que bater bem todos aqueles cantinhos e cabeços. Assim fez durante mais de uma hora, mas sem as voltar a ver.
Esquecendo de vez aquele bando, mudando de sítio, passou a Ribeira de St.ª Marinha, procurando pôr os pés nos pedregulhos que parecem ali colocados para esse efeito, mas não conseguindo evitar molhar ligeiramente as botas. Porra! …as cadelas parece que escolhem sempre os pontos a montante propositadamente para sujar a água. Afugentou-as e pousou a espingarda, com o cartucho da câmara atravessado na janela (não fosse o diabo tecê-las!), aliviando-se da cartucheira e da camisola. Deixou que a corrente devolvesse a limpidez, para se debruçar e sorver, com prazer, uns bons golos de água fria, repondo assim a quantidade perdida… é que já tinha suado bem!
Contemplou a imensidão dos lombos daqueles montes, imóveis e imutáveis… aquilo assusta e não é fácil vencer semelhantes desníveis, mas as perdizes estão lá certamente! Conhece bem os nomes dos lugares, dos ribeiros, dos marcos geodésicos e as curvas de nível, de tanto consultar a carta militar da zona.
Antes de avançar, enquanto olhava e pensava que iria mesmo “imergir na paisagem”, mastigou alguns figos secos e um cubo de marmelada para ganhar energia.
Optou por subir pelo caminho que contorna o olival plantado em pequenos patamares no “canado”, o­nde na Quinta-feira passada as tinha falhado com três tiros. A geada virgem, entranhada na terra, revelava ruidosamente a sua presença, tornando impossível passar despercebido naquele profundo e absoluto silêncio.
Naturalmente, reagindo ao ruído, salta uma do meio do olival, sorrateira e quase sem deixar perceber o bater das asas. Uns passos mais e levanta o bando, com cerca de meia-dúzia. Viu-as meterem-se ribeiro acima e pareceu-lhe que teriam pousado próximo, junto à linha de água. Procurando fazer o mínimo barulho possível, seguiu na mesma pelo caminho até chegar ao fim. Já sabia que terminava ali e depois era mato denso, impenetrável. De relance, admirou as altas paredes de xisto, construídas noutros tempos para segurar a terra que sustenta as pequenas oliveiras e amendoeiras, passando, no único ponto o­nde era possível, o estreito ribeiro, encaixado também ele entre paredes altas. Subindo um pouco, do outro lado, mais limpo, com amendoeiras sem folhas, seria possível vê-las melhor. Segurava a espingarda com as duas mãos e seguia, ganhando altura, à espera de ouvir o levante. Sempre eram seis ou sete perdizes! Podiam saltar a todo o momento… mas não saltaram…! Apesar de as cadelas sinalizarem nitidamente que tinham estado ali, nada se mexeu nem quebrou o silêncio, a não ser a água saltitante do ribeiro.
Deduzindo que poderiam ter ido “a pés” ladeira acima, decidiu enfrentar a subida com determinação – que é como quem diz “com a faca nos dentes” – e começou a caminhar em ziguezagues longos, de modo a aproveitar a vantagem das curvas de nível e fazendo pausas de o­nde em o­nde, para controlar a respiração. Estava a subir da cota de 300 metros para cerca de 600 m. Parou no bico de uma fraga que permitia ver para os dois lados, fez barulho e atirou pedras para o mato rasteiro e ralo. Nada…! Apenas alguns tordos levantaram ruidosamente. o­nde se teriam metido? Devem ter ficado lá em baixo, no matagal mais cerrado, pensou.
Era meio-dia. Sentou-se e, comendo algo mais para recuperar forças, admirava a beleza esmagadora da paisagem, a imensidão de montes e vales que se seguem e sobrepõem... Sentindo-se invadido por uma suave sensação de paz e tranquilidade, naquela atitude puramente contemplativa, evocou o bom sabor das reflexões de Ortega y Gasset:
(…) «Não é, pois, andar e andar, subir penhascos, descer valas e barrancos, silenciar os passos, ter paciência nas esperas, ter pontaria, o que mais essencialmente tem que fazer o caçador, senão – quem o diria! – a menos musculosa das operações: olhar!» (…)
Caminhando, sempre a subir, pelo quase imperceptível carreiro de pé-posto, estrategicamente implantado na linha de festo, não se sabe bem por quem, nem há quanto tempo, nem por quanto tempo…, ia observando as típicas fezes verde-e-branco, frescas e de dimensão considerável, revelando a passagem recente de aves grandes. É a querença delas! Na cumeada podem observar todos os inimigos, para um lado e para o outro, sem serem facilmente surpreendidas.
A Lira inicia um périplo de avanços, paragens e viragens à esquerda e à direita, até que, decidida, apontando, começa a “guiar”, mantendo-se mais ou menos na mesma cota numa mancha de troviscos, estevas e arçãs. Procurou acompanhá-la, mas ia em passo um pouco rápido e foi-se distanciando mais do que deveria, seguida de perto pela Rola.
Como era de esperar, fora do alcance de tiro, um pequeno bando, voando a rasar as pontas dos arbustos, escapou para cima.
− Já lá vamos…! É o terceiro bando, disse em voz alta.
Retomou o trajecto inicial, para mais rapidamente chegar até ao sítio o­nde um secreto palpite lhe dizia que teriam pousado e apanhá-las por cima; sozinho seria inútil tentar segui-las a direito.
Na beira do caminho de terra batida que faz o limite da zona de caça, cinco espojadouros recentes, bem marcados.
Vieram-lhe à memória alguns bons lances ali vividos quando, há mais de quinze anos, aqueles eucaliptos estavam a ser plantados. Num dia, duas perdizes abatidas quase de seguida, no limpo da plantação, agora com árvores desta altura, que permitem às perdizes escaparem sem lhes podermos pôr a vista em cima, quanto mais o chumbo!
Depois de uns momentos de hesitação, decide avançar pelo aceiro que contorna a mancha de eucaliptos, continuando a reparar nos indícios de presença das ariscas e bravias galiformes.
Subia, agora numa parte de inclinação bastante acentuada, zona sombria o­nde a geada não tinha derretido e era difícil caminhar por estar sempre a escorregar. Um bando de pombos-torcazes levanta, com estrondo, saindo de uma carrasqueira o­nde certamente se estavam a empanturrar de bolota. Encarou a arma, mas preferiu não disparar na expectativa das perdizes … e ainda bem! Saltam duas… um único tiro, rápido e instintivo, à que se lançava ladeira abaixo com toda a velocidade. Cai rebolando desamparada para o fundo do canado, do lado oposto, perdendo-se no meio do matagal. Não houve tempo para o segundo tiro, a outra ficou logo encoberta pelas giestas e estevas mais altas. Em simultâneo, o bando de torcazes estava de regresso voando na sua direcção, perfeitamente ao alcance de tiro e baralhando as cadelas que se fixaram naqueles vultos esvoaçantes, sem perceberem ainda o que tinha acontecido. Preocupado em cobrar rapidamente a perdiz tombada nem sequer disparou, mas podia tê-lo feito… − Busca Lira! Vai lá, Rola…
Como doidas, corriam em círculos e olhavam para todo o lado, aguardando ordens mais precisas. Viu que tinha de as levar ao sítio e avançou na direcção da queda, vencendo um pequeno silvado na linha de água. Atirou uma pedra para o local o­nde lhe parecia que deveria ter caído e as cadelas, prontamente, dirigiram-se para lá. Pegando no rasto, a Lira começou a descer seguida da Rola até que deixou de as ver. Em algum tempo (nestas situações nunca se sabe exactamente quanto, mas parece sempre muito…!) regressavam e trazia a perdiz a cadela mais velha, claro!
Entregou-lha, abanando-se toda de contentamento e disputando afagos com a Rola pelo meio de pouco sérias rosnadelas.
− Lindas, é assim mesmo…!
Havia que continuar a jornada. Seguiu a corta-mato até apanhar novamente o aceiro e chegar ao ponto mais alto, com cerca de 600 metros, no lugar chamado Albreves. Ao longe, do lado Norte, via o carro e, a Noroeste, a Capa Longa o­nde, tanto nesta época, como em muitas outras, até já é difícil lembrar os incontáveis lances extraordinários! Rodando o corpo, podia ver as Centeeiras, a Quinta da Boavista e quase que o mundo todo…
O instinto dizia-lhe que o resto do bando devia estar mais à frente e o melhor era continuar pelo aceiro que contornava os eucaliptos.
Não tinham decorrido dez minutos quando a Lira “marra” demoradamente, apontando para o lado de baixo. Estava de tal modo “pregada” que o deixou passar para a frente sem se mexer. A Rola dava também sinais de sentir a peça de caça. O ponto o­nde se encontrava era o ideal; dali via bem para baixo, só que, do lado esquerdo, havia um grande maciço de carrasqueiras. Parou, passando a vista pelos poucos pedaços de terreno visíveis no matagal denso e pôs-se em guarda, com a espingarda bem segura, os sentidos totalmente alerta, esperando o levante, quase deixando de respirar e olhando para todos os pontos possíveis, não esquecendo que, por vezes, os cães apontam numa direcção e as perdizes escapam silenciosas, peonando sorrateiramente no sentido oposto.
Impossível avaliar quanto tempo durou aquilo! Certo é que, com a ordem apenas sussurrada, a Lira dá uma fiada e mete-se no matagal fazendo saltar uma única perdiz, com enorme estardalhaço, “picada” de perto, mas que ficou de imediato encoberta pelas carrasqueiras. Até parece que planeiam bem para que lados hão-de levantar antes de o fazerem!!! De facto, o mais lógico seria ter voado em frente, para baixo, mas não, a “lógica” delas é outra…
Com a arma bem encarada, esperou-a à esquerda, depois de passar as carrasqueiras e o tiro, pouco certeiro, fê-la baixar, mas não cair à vista. Percebendo bem que ia d’asa e poderia ter pousado no meio dos eucaliptos que, por sorte, ali eram mais ralos e com menos folhagem, chamou as cadelas e procurou conduzi-las rapidamente até ao caminho da linha de cumeada, esperando que pegassem no rasto. Não pegaram, apesar de as ter entusiasmado bem com as palavras do costume. Voltou atrás, ao sítio o­nde tinha disparado, para referenciar melhor a direcção da trajectória, marcando as extremidades da moita de carrasqueiras mais altas do outro lado do caminho e avançou para lá rapidamente. Viu a Lira fazer dois rodopios no chão limpo do caminho e, decidida, entrar naquele “mar” de estevas e giestas. Procurando segui-la para lhe dar ânimo, caso fosse necessário, embrenhou-se também pelo matagal até ser humanamente impossível romper e deixou de a ver ou ouvir…
No meio das altas estevas, que impediam a visibilidade para qualquer lado, com a Rola aos pés, permaneceu imóvel, tentando ouvir a cadela. Sem resultado… Ficou assim, em silêncio, porque chamá-la poderia estragar tudo, durante dez minutos, quinze, meia-hora…? Não se sabe! Mais uma vez foi muito tempo, uma eternidade!
Por fim, começou a sentir o marulhar da vegetação seca e a respiração ofegante da cadela. Pensou: se vem a arfar, não traz a perdiz…!? Ei-la… sem nada!?!
− Então, Lira? O­nde está…? Será possível…?
Os anos de experiência nestas andanças levaram-no a observar melhor a língua-de-palmo que trazia fora da boca e vendo que tinha uma pena no canto dos lábios, outra na língua, vociferando, dirigiu-lhe os melhores impropérios que conhece para estas situações, ordenando-lhe com firmeza:
− Lira, deixaste-a, vai lá buscá-la…!
Desapareceu novamente e ficou sem a ouvir mais uns intermináveis minutos, até que… aí vem ela, desta vez sem arfar, silenciosa, com a perdiz toda molhada da saliva e o dorso depenado.
− Dá cá, linda… então isto faz-se!?
Pareceu-lhe que se ria, quando lha entregou, gozando com a situação e como se dissesse:
− Então, pensavas que não a tinha cobrado? Era só p’ra brincar…!
Cismando no episódio, deduziu que teria regressado ao sítio o­nde iniciou a busca e, não o vendo lá, terá ido procurá-lo deixando a peça no caminho. Seria…??? Nunca poderá sabê-lo, até porque nem viu exactamente para o­nde foi quando retomou a busca.
Tinha atingido o limite de perdizes estabelecido na Zona de Caça. Regressou, em passo rápido, descendo a direito pelo mato rasteiro até ao Vale das Talvas, em direcção à ribeira, nem sequer dando importância às repetidas paragens das cadelas, que certamente sentiam emanações de alguma perdiz pregada.
Na vida de um caçador de perdizes, há dias assim, atípicos… três tiros, três perdizes, das autênticas; lances fantásticos que ficarão gravados na memória, daqueles que hão-de assaltar o pensamento, quando menos se esperar, recorrentes, ao longo de muitos anos…

Texto de Agostinho Beça
Perdizes (aguarela), de Francisco Charneca

14 de julho de 2014

Final do Campeonato de Santo Huberto em São Miguel


No dia 13 de Julho, do corrente ano, realizaram-se as últimas duas provas do campeonato de Santo Huberto com cão de parar sobre perdizes vermelhas de 2014, da Ilha de São Miguel, que foram julgadas pelo juiz Micaelense Paulo Cruz.
No conjunto das duas provas, os três primeiros classificados ficaram assim ordenados:
1° lugar: Pedro Moniz, com a Pointer (F) Cindy;
2° lugar: Gualter Furtado, com a Setter Inglesa (F) Madona;
3° lugar: José Teixeira, com o Perdigueiro Português (M) Boavista.
No total do campeonato, foram concretizadas em São Miguel nove provas, das quais resultou a classificação que se segue dos três primeiros praticantes de Santo Huberto:
Campeão: Pedro Moniz;
Vice-Campeão: Gualter Furtado;
Terceiro: José Moniz.
A cerimónia de encerramento foi realizada no Clube de Tiro de São Miguel, tendo o juiz Paulo Cruz sido homenageado com uma Placa, através da qual os entusiastas desta modalidade desportiva e altamente pedagógica de caça, agradecem o contributo que ele vem dedicando ao Santo Huberto, tendo ainda sido oferecido ao Paulo Cruz o Livro "Colectânea Literária Cinegética", recentemente editado e que inclui um importante artigo sobre a caça ao coelho bravo nos Açores escrito pelo caçador da Ilha de Santa Maria que é o Pedro Silveira.

Texto e foto da autoria de Gualter Furtado

6 de julho de 2014

A Galinhola na Cozinha Tradicional dos Açores

Há uns anos, disse-me o Carlos Pereira* que ouvira falar da existência de receitas sobre a Galinhola, num livro Açoriano.
Hoje, defronte da biblioteca do meu pai, num ordenamento que só ele percebe, entre duas obras que nada tinham a ver com este tema, descobri "Cozinha Tradicional da Ilha Terceira", de Augusto Gomes, oferecido pelo próprio autor, em Maio de 1987, por, segundo a dedicatória pessoal, "serviços prestados na recolha para o livro da cozinha tradicional da Ilha de Santa Maria".
No índice, e para além de outros segredos, constam diversas receitas de coelho, de codorniz, uma de pato com azeitonas e três receitas de Galinhola, a saber:
- Galinhola Grelhada;
- Galinhola à Armando Mendonça;
- Galinhola à Padre-Cura.
Na Nota que dedica ao Leitor, conclui o Augusto Gomes: "(...) Assim, afastada que foi a veleidade científica, mais não resta que um simples trabalho de recolha, em que o mérito vai para aqueles que, desinteressadamente, nos cederam receitas ciosamente guardadas através dos anos."
Ao contrário do que afirma o autor, trata-se este de um trabalho nada simples, mas antes bastante completo e de elevada qualidade, porque, para além das interessantíssimas receitas, nos oferece frases e adágios, um calendário gastronómico, plantas existentes na Ilha Terceira com aplicação na culinária e na medicina caseira, entre outra rica e diversificada informação; um saber valiosíssimo!
Por outro lado considero de muito interesse a existência de receitas sobre a Galinhola, num livro da cozinha tradicional Açoriana, porque se estabelece uma relação directa com a caça que aqui se vem praticando ao longo dos tempos, pois a galinhola é uma ave cinegética.

*Carlos Pereira é autor do livro “Aves Dos Açores” e de diversos outros artigos de carácter científico sobre aves - alguns deles sobre a nidificação da narceja nos Açores. Também foi o criador/gestor do site "Aves dos Açores" e Coordenador Regional dos Açores no projecto "Atlas das Aves Invernantes e Migradoras de Portugal".

2 de julho de 2014

Colectânea Literária Cinegética

No passado dia 28 de Junho de 2014, pelas 16h00, nas bonitas instalações da Casa do Território, em Vila Nova de Famalicão, teve lugar a apresentação do livro “Colectânea Literária Cinegética”.
Trata-se de uma obra onde se associaram e colaboraram quarenta e duas pessoas que partilham a paixão pela caça esclarecida e com regras, pelos seus amigos cães, pela leitura e pela escrita.
A maioria, publica pela primeira vez; outros, consagrados, já deram livros ao prelo, mas que nem por isso se inibiram de repartir as páginas que a todos vieram juntar, as quais se apresentam profusamente ilustradas por gravuras e aguarelas originais, de elevada qualidade artística.
Ao confrontar-mo-nos com as histórias, narrativas e crónicas, nos deparamos com a expressão de diferentes idiossincrasias, unidas pelo gosto comum da multidisciplinar prática venatória, algumas contadas na primeira pessoa, enquanto outras nos arrastam para os meandros íntimos do homem-caçador.
No âmbito desta apresentação, e no mesmo edifício, teve lugar uma exposição de arte, a que se seguiu um jantar, num restaurante daquele município, provando-se, na linha absolutamente singular e inédita que caracteriza este livro, “que a caça é indiscutivelmente um factor de união entre os homens, independentemente da sua opinião política, da religião que professam, da sua raça, do sexo, dos bens de fortuna e do berço”. (pp. 10)
Em pospasto apresentou-se o Clube Literário Cinegético, iniciativa que visa a recuperação, registo e produção, reunião e publicação de trabalhos que versam esta apaixonante temática, comprovando-se que os caçadores se conseguem entender, unir e organizar, por si próprios, bastando para isso uns poucos, mas determinados.
A “Colectânea Literária Cinegética” é disponibilizada ao público através da Portugal Hunting, por 25,00€, revertendo os proveitos para a investigação científica relacionada com a caça.
Assumindo-me caçador e único representante insular, rubricando "Caça ao coelho nos Açores", revejo-me na plenitude de tudo isto, na certeza de ter sido o mais humilde dos seus escrevinhadores.
Ao Francisco Charneca, José António Neves e Manuel Vassalo, vos devo a iniciativa e o convite para participar; Aos ilustres colaboradores, a devida vénia; A todos, imensamente reconhecido!

São Pedro, 2 de Julho de 2014
Pedro Miguel Silveira


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