29 de março de 2010

Zacarias D’Aça – in Memoriam (1839-1908)

Entroncado, de bom aspecto, bigode forte e mosca, com seu colarinho engomado e gravata preta em laço, quase uma fita, Francisco Zacarias de Araújo da Costa Aça tinha um ar de bonomia, filho de um militar, Zacarias D’Aça foi um erudito, um caçador emérito, um escritor vernáculo e cavaqueador infatigável.

Profissionalmente, foi 2º oficial da Direcção Geral d’Instrução Pública; leccionou durante 14 anos no Colégio Luso-Brasileiro, foi sócio efectivo do Grémio Artístico e Académico, sócio de mérito da Academia Real de Belas Artes, exercendo com a maior competência o cargo de bibliotecário.
Dedicou-se a assuntos históricos, cinegéticos, à arte e investigação deixando vasta obra publicada, privou com Castilho, Herculano, de quem herdou qualidades literárias.

Prosador de finas e poderosas faculdades, teve singeleza e colorido, elegância e individualidade.


Para além de colaborador em esparsos periódicos da época Occidente, Tiro Civil, Tiro e Sport, A Caça, foi também fundador e director literário do primeiro periódico de caça que existiu nas nossas terras Jornal dos Caçadores, 1875. Também preparou e publicou obras onde o prazer da caça sempre teve lugar destacado, como sucedeu em 1883 com o Almanach dos Caçadores, que incluía preciosas informações e conselhos úteis. Em 1899 publica Caçadas Portuguesas. Figuras de campo, paisagens; e aqui quer na descrição de caçadas, de paisagens ou personagens, a sua pena esteve seguramente à altura de um Silva Porto. Em 1907 já bastante doente, e como se de um último fôlego de tratasse ainda publicou Lisboa Moderna onde trata de assuntos para além do prazer da caça, ainda assim pintando com toda a sua mestria uma boa meia dúzia de episódios de caça. E como se não bastasse por si só, a beleza no estilo, o apropriado da linguagem a graça na descrição, também figuram nas suas páginas os caçadores mais notáveis da época.

Pode ser-se um bom caçador no mato, bater-se a meia encosta com muito vagar, uma bandada de perdizes ou ler no chão rijo o rasto do arteiro e vigoroso javali que vai ferido, mas escrever com maior entusiasmo e singeleza que Zacarias D’Aça não é fácil, foi inegavelmente, o primeiro e ainda do melhor que se escreveu do género em Portugal. Estou seguro que ainda tem a seu lado a sua cadela predilecta a “Jóia”, a sua escopeta “scott” e seus bons companheiros Bulhão Pato, Lopes Cabral, Carlos e Jaime Bramão, Dr. Avelar, Dr. Manuel Bento de Sousa (o famoso Dr. Minerva…) bem como o catraeiro Lourenço, o homem que os transportava para a outra banda em busca da elegante codorniz, da nédia lebre ou da esquiva narceja nesse juncal alagado da Trafaria com alcantis bordejados pelo Tejo.
Quem diria, o paraíso da caça que era a Trafaria meados do século XIX!
Um outro dos seus caçadeiros preferidos, eram essas encostas da Arruda revestidas de vinhedos que corria em busca de uma boa cintada de perdizes, por este lugares ainda ecoam estéreis tiros, deste ínclito caçador-escritor muito marcado pelo romantismo.

Não poderia pois velho companheiro no centenário da sua morte, deixar de relembrá-lo, e dedicar-lhe embora que parcas algumas palavras amigas e de admiração.

Nuno Sebastião

Texto e foto de Nuno Sebastião
Publicado na Calibre 12, em Dezembro de 2008, e aqui reproduzido com a devida autorização do autor

17 de março de 2010

Oito Séculos de Caça em Portugal

"Oito Séculos de Caça em Portugal", um grande livro da autoria de Miguel Sanches Baêna e de João Maria Bravo, com prefácio de Jorge Roque de Pinho.
Data de 20 de Novembro de 1998, com uma tiragem especial de 3500 exemplares em exclusivo para o Grupo BPI.

"O arranjo gráfico e artístico foi de Angelina Luís.
Os textos foram compostos em tipo gillsans e as selecções de cor foram executadas por Reproscan-Reprodução Gráfica, Lda, que também executou a montagem dos fotolitos.
Os trabalhos de impressão e acabamento sobre papel tulimatt de 150 gramas, da tulipel, foram efectuados nas oficinas da Eurolitho, Impressores Gráficos, Lda."

Possui 9 capítulos, que se desenrolam ao longo de 394 páginas, a nomear:
- I Montaria; II Falcoaria; III O Cão de Caça; IV Armas de Caça; V A Caça à Raposa a Cavalo com Matilha; VI A Caça Ligeira; VII Caçadas e Caçadores - memórias de caça; VIII Armas e Caça na África Portuguesa; IX Jóias e Caça (séc. XIX).

Trata-se esta, juntamente com "A Propósito de Caça" e "A Caça no Império Português", de uma das mais emblemáticas obras da literatura cinegética deste País.

A páginas 324, encontramos uma caricatura de Bulhão Pato, da autoria de Rafael Bordalo Pinheiro in Álbum das Glórias.
Introduz-nos a mesma a uma história, narrada por Saraiva Mendes, intitulada "A Espingarda de Bulhão Pato", que tomo a liberdade de transcrever:

Era Inverno e época de caça. Na Quinta do Minhoto, a dois passos dos Riachos e a seis da Golegã, propriedade de Agnelo Freire Salter de Sousa Cid, grande senhor que se ufanava de ir a Torres Novas apenas através das suas terras, ou fazendo o mesmo da Chamusca a Abrantes, há muito que se preparava a grande caçada às narcejas. Essa ave do Norte da Europa e da Ásia Menor, de enorme bico, espécie comum em Portugal e muito difícil de matar, congregara para o belo palacete do Minhoto algumas das melhores espingardas especializadas em tão apreciada ave, nomeadamente o poeta Bulhão Pato, personalidade diversificada de escritor, caçador e gastrónomo.
Bulhão Pato chegara na véspera. E à volta do farto lume da lareira de oliveira e azinho, teciam-se conjecturas prognosticando o número de peças que cada um mataria no dia seguinte.
Salter Cid, homem generoso e brincalhão, começou a duvidar, em pura chalaça, das proezas venatórias do poeta.
«Você diz que mata esse mundo e o outro de narcejas, pois fique sabendo que o meu amigo José Augusto Saraiva, dos Riachos, chega e sobeja para si.»
O que foste dizer. Abespinhado, ferido no seu orgulho, Bulhão Pato retorquiu:
«Diga lá ao seu amigo se, por mero acaso, matar mais narcejas do que eu, sem errar, perco esta espingarda que me ofereceu o rei de Espanha.»
Todos se riram da liberdade poético-venatória, menos Bulhão, que ensimesmou naquela de haver a possibilidade de alguém o bater nas narcejas!
A conversa à roda da lareira continuava com histórias curiosas. Agnelo Cid, bom conversador, e cuja vida era recheada de histórias, atirou esta:
«Sabe. ó Bulhão Pato, quem é o meu amigo Saraiva? É uma história curiosa e dramática. O José Augusto Saraiva era filho do notário em Trancoso, dr. FrancoVeloso, liberal dos sete costados, perseguido como não podia deixar de ser pelos patuleias, casado com D. Rosa Saraiva, de excelentes famílias beiroas. A perseguição foi de tal ordem que ele viu-se na necessidade de espalhar os três filhos. O José Augusto, que trato como filho, foi-me confiado e os outros dois foram para Vila Franca de Xira e Lisboa, também confiados a correligionários liberais.»
«Então o seu amigo dever-se-ia chamar Franco Veloso...»
«Mas isso era nome maldito e tiro pela certa. Os rapazes adoptaram o nome da mãe para se esquivarem a mais perseguições. Cada um fez a sua vida e parece que escaparam à sanha absolutista.»
«Conte-nos agora uma história sua...»
«Calculem vocês, há anos, estava eu na Feira de Sevilha e vi um cavalo soberbo, montado por um grande de Espanha. Quanto quer pelo cavalo?
O homem mirou-me de alto a baixo e atira: 50 mil pesetas. É meu, disse, e paguei-lhe logo em moeda de oiro. Estupefacto pelo gesto, o conde espanhol nem tempo teve de abrir a boca, pois, para maior espanto do orgulho nobre, rapei da minha navalha e cortei as crinas e o rabo do belo animal e apenas murmurei: era o animal que eu precisava para tirar a água à nora!»
Senhor de enormes propriedades, orgulhoso, cacique da região, onde chegou a ter pequeno exército, por si mantido, era respeitado e temido até em Lisboa, pelo apoio incondicional que dava à causa liberal.
«Ó Cid, foi verdade você ter dito à rainha para vir falar consigo?»
«Não é bem assim, mas quase. A rainha, senhora D. Maria II, estava na Quinta da Broa, do José Rafael da Cunha, no termo da Azinhaga, e mandou um enviado para que eu lhe fosse falar. A minha resposta só poderia ser uma: diga a sua magestade que é tão longe do Minhoto à Broa, como da Broa ao Minhoto! Como é evidente, fiquei na minha casa.»
No outro dia, mal se levantaram, o tema de conversa era o mesmo: a aposta da espingarda. No pátio, os cavalos e as carruagens aguardavam os caçadores.
«Ó Bulhão Pato, quero apresentar-lhe o meu amigo de quem lhe falei ontem, o José Augusto Saraiva.»
«Tenho muito prazer em o conhecer. E, segundo me disse o Salter Cid, o senhor é o melhor caçador de narcejas aqui da região. E ontem apostei com o nosso anfitrião que, caso o senhor matasse mais narcejas seguidas do que eu, lhe daria esta espingarda, oferta do rei de Espanha.»
«Isso é uma brincadeira do Salter Cid. Sou um vulgar caçador, às vezes com sorte...»
«Já lhe disse, se o meu amigo me bater, a espingarda será sua.»
Deu-se a caçada e, na verdade, José Augusto Saraiva foi o que pendurou mais narcejas ao cinto, matando nove, sem errar.
Quando regressaram ao Minhoto, virou-se para o companheiro e deu-lhe a espingarda.
«É sua, Sr. José Augusto Saraiva.»
«Desculpe, mas não aceito. Foi uma brincadeira do Salter Cid.»
«Faço questão.»
E questão foi essa que os caçadores ficaram amigos a tal ponto que José Saraiva se deslocou, por diversas vezes, a casa do poeta, na Torre da Caparica, para daí sairem para caçadas... e a espingarda ainda hoje se encontra na posse da família.

Apenas uma das muitas histórias em "Oito Séculos de Caça em Portugal", para serem lidas e relidas.

7 de março de 2010

A Propósito de Caça

"A Propósito de Caça", publicado no ano de 1982, é da autoria de João Maria Bravo, uma das personalidades mais conhecidas do Mundo da Caça Português e que foi, inclusive, o Director da prestigiada Revista "Diana", publicada até ao ano de 1975.
O autor justifica a existência desta obra do seguinte modo: "têm sido alguns os que, especialmente nos últimos anos, me têm falado em fazer publicar, num só volume, o que sobre caçadas e caça escrevi, bem ou mal, durante dezenas de anos.
Argumentam estes que, através dos meus escritos, se poderá não só refazer parte de um período importante da história cinegético-venatória portuguesa mas, ainda, colher elementos para uma futura lei da caça."

Trata-se este de um dos Grandes Livros de Caça Nacionais, à semelhança d' "A Caça no Império Português", por exemplo, não só quanto à sua dimensão e ao número de páginas que ostenta (752), mas também ao nível do conteúdo, que é de um valor documental assombroso, sendo-o tanto ao nível da Caça propriamente dita, com imensas gravuras, narrações pessoais e de terceiros que relatam histórias e se debruçam sobre a temática da organização cinegética, como ao nível da história recente deste País.

Relato um episódio que sustenta a afirmação anterior e que se encontra perfeitamente documentado na obra em epígrafe.
Tudo se passou no ano de 1974, poucos meses após a revolução armada que acabou por dar origem ao actual regime político português, quando a Revista "Diana", na sua edição de Outubro daquele ano, através do seu n.º 255, publicou um artigo intitulado de "Chacina Geral da Caça - no dia da abertura geral".
Lê-se, então, em geito de necrologia, um conjunto de notícias identificadas através dos seguintes títulos: "Crime degradante contra a natureza e a Cinegética Nacional"; "Extinguem-se os últimos linces existentes em Portugal (relativa à Herdade da Baraona); "Vitelos e Vacas roubados ou mortos a tiro (relativa à Herdade de Pinheiro)"; "Destruição total de patos"; "Açude de achigão esgotado à rede (relativa a Rio Frio)"; entre outras da mesma natureza, que divulgam e relatam a balbúrdia, as tropelias e os crimes cometidos a coberto da pretensa liberdade que caracterizou a abertura geral da caça, no ano de 1974.

José Ortega y Gasset faz uma afirmação, inserta no ensaio "Sobre a Caça e os Touros", que se enquadra perfeitamente no descrito acima e que acaba por corroborar os factos denunciados e publicados na "Diana", através da pena de João Maria Bravo: "em todas as revoluções, a primeira coisa que fez sempre o «povo» foi saltar as cercas das coutadas ou demoli-las, e em nome da justiça social perseguir a lebre e a perdiz".

O facto é que, em resultado de tão vigorosa escrita, no dia 12 de Dezembro do ano de 1974, recebeu o João Maria Bravo, o Ofício n.º 119/74-C, de 09 de Dezembro de 1974, remetido pela Comissão AD-HOC Para a Imprensa, Rádio, Televisão, Cinema e Teatro, que aplicou à Revista "Diana", "ao abrigo do art.º 3.º, do Decreto-Lei n.º 281/74, de 25 de Junho, a multa de 150.000$00, sem prejuízo da responsabilidade criminal prevista nas leis vigentes que possa ser exigida às pessoas singulares, as quais ficam, como determina a lei, sugeitas ao foro militar".

Em geito de resposta e de esclarecimento para o que então se passava, a "Diana", no seu n.º 256, saído em Janeiro de 1975,  publicou uma carta aberta à comissão supra citada, onde se valeu das suas razões e concluiu dizendo que: "calarmo-nos, por medo, é uma forma de servilismo, uma maneira de morrer, sem razão" e que, "em democracia assim como na vida autêntica o medo não tem lugar".
No mesmo número, desta feita numa notícia de 30 de Janeiro de 1975, a Revista "Diana" informou que iria suspender a sua publicação após 27 anos  de actividade, mas que não o fariam "por espírito de intransigência ou por medo", mas porque "continuar equivaleria a termos de pensar, antes de escrevermos, nas consequências inerentes ao que íamos afirmar, por mais justas e verdadeiras que as nossas afirmações pudessem ser e a só dizermos não o que quiséssemos ou devêssemos mas, só, o que pudéssemos."
Na página precedente a estes dizeres, encontra-se publicada uma carta pessoal, datada de 2 de Dezembro de 1971 (três anos antes do 25 de Abril e deste incidente) proveniente do Gabinete do Presidente, da Presidência do Conselho, relativa a um acontecimento semelhante, desta feita protagonizado pelo serviço de censura do regime derrubado, bem demonstrativa do modo ardente, vigoroso e apaixonado de como a "Diana" se expressava quando estava em causa a defesa da Caça, independentemente de quem exercesse o poder.

"Meu Caro João Bravo:

Depois da conversa com o seu irmão recebi a Diana e apressei-me a ler o discutido artigo. Quando cheguei ao fim disse de mim para mim: «Se isto é o artigo com cortes, o que diria ele sem cortes...».
Você tem um estilo duro e agressivo e gosta de chamar nomes às pessoas ou aos ... «poderes públicos». O que não acrescenta a razão que possa ter e não favorece o êxito das suas teses. A censura podia não ter cortado nada: mas se num ou noutro caso os cortes são injustificados, noutros creio que lhe prestou um serviço. Tudo se pode dizer: é uma questão de sabê-lo dizer. O estilo contundente, repito, não favorece a civilização necessária no trato entre pessoas que não querem ser selvagens. E não é só selvagem o que mata caça indiscriminadamente...
De caça não sei nada - a não ser que dificilmente vejo dois caçadores de acordo sobre os seus problemas.
Desculpe a rabujice do seu velho professor que tanto o estima,

Assina: MARCELO CAETANO"

Em poucas palavras nos diz este pequeno texto muitas coisas...
E este livro é disso um grande exemplo de informação e saber, bem como da qualidade e da experiência do seu autor e colaboradores, mas também da prova de uma inquestionável paixão pela Caça!
De "A Propósito de Caça" foram numerados e autografados pelo autor, quinhentos exemplares com encadernação de luxo, trabalhada à mão em carneira e ouro, e, da leitura que dele se faz e até ao seu final, poder-se-á inferir que, a tal multa,... continua por pagar e que há muito caiu no esquecimento, mas que a memória da elevada qualidade da "Diana" e da mensagem que transmitiu, essas... prevalecem!

5 de março de 2010

A Caça no Império Português

Trata-se de uma obra fenomenal, da mais emblemática sobre caça em Portugal (continental, insular e ex-colónias ultramarinas).

A Caça no Império Português, foi editada pelo jornal "O Primeiro de Janeiro" - do Porto, iniciada que foi a sua publicação em fascículos, corria o ano de 1943, acabando-se a sua impressão em Fevereiro de 1945, nas Gráficas da Neogravura, Limitada, em Lisboa.

São dois volumes, contando o I - 317 e o II - 639 páginas que se apresentam profusamente ilustradas com fotografias da mais diversa fauna bravia, desenhos, reproduções de quadros e de pinturas especialmente feitas para esta obra, algumas delas do pintor angolano Neves e Sousa.

No Tomo II, podemos encontrar a seguinte distinção entre "atirador" e "caçador":

"... a qualidade do atirador depende essencialmente da sua habilidade e da maneira mais ou menos aperfeiçoada como a cultiva; a qualidade do caçador é condicionada pelos recursos físicos, a experiência e o saber.
Conhecemos um exemplo que ilustra com muita clareza esta distinção de qualidades - aliás complementares, como dissemos.
O caso passou-se há alguns anos, quando o uso do automóvel para digressões de caça não estava ainda tão generalizado como hoje.
Certo caçador da colónia inglesa que habita o nosso país, e muito conhecido em Lisboa, apreciava especialmente a caça às galinholas - essas aves sombrias dos países enevoados e tão comum nalgumas regiões da Inglaterra.
Fazia as suas caçadas, habitualmente, nos pinhais da «outra banda» do Tejo, e acompanhavam-no os seus «pointers», cuidadosamente instruídos - verdadeiros cães de um verdadeiro caçador.
Num ano pobre de galinholas, isto é, num ano de escassa imigração - o que, como se sabe, não é raro - nem por isso esmoreceu o entusiasmo do caçador nem a sua fidelidade aos pinhais em que se acostumara caçar.
Todos os domingos desembarcava na outra margem do Tejo, com a espingarda e os cães, e por lá se gastava todo o santo dia.
E como o ano era ingrato para galinholas, como dissemos, e os caçadores já o sabiam, , nenhum outro senão êle se via a correr aquêles pinhais - a ponto do caso começar a intrigar tôda a gente. Tanta persistência parecia história - e tanto mais, quanto era certo que o nosso homem regressava sempre com o cinto tão leve como o tinha levado. Nem uma galinhola!
Tiros também não se ouviam no pinhal - e um ou outro que lhe espreitava a cartucheira não dava por munições consumidas! Preguntava-se:
- Se está provado que as galinholas escassearam êste ano, se, por isso, ninguém se dá ao trabalho de as ir procurar - e se, finalmente, o homem não traz caça nem dá tiros, que vai êle lá fazer todos os domingos?
Nesse tempo, felizmente, não havia razões para se imaginar ou tecer uma história de espionagem - porque se as houvesse o bom do inglês não teria escapado.
Aconteceu, porém, que certo dia um outro caçador, talvez mais curioso de saber o que o inglês fazia do que desejoso de encontrar galinholas, o bispou nos pinhais e o seguiu de longe - interessado, dizia êle, por admirar o trabalho dos magníficos «pointers». E assistiu a manobras que não havia maneira de compreender. O inglês, atrás dos seus cães, seguia interessadíssimo o seu trabalho, tão atento, cuidadoso e exemplar em todos os movimentos, como se caçasse em ano farto de galinholas. Em certa altura, e depois de uma busca magistralmente conduzida, um dos «pointers» «pára» impecàvelmente, espera o dono com todos os preceitos da arte e, por fim, levanta uma galinhola. O inglês mete a arma à cara, aponta, segue a ave no ponto de mira... e a galinhola desaparece entre os pinheiros, sem ser atirada.
Supôs o caçador que o seguia que tivesse havido precalço e que, por qualquer motivo inesperado, o inglês não pudesse ter disparado.
Continuou a segui-lo.
Os cães tornaram a procurar, realizaram novas e magníficas buscas e, algum tempo depois, eis outra vez um dos «pointers» parado, o dono atento e firme, a galinhola levantada, e espingarda apontada... e nada mais. A ave apagara-se nòvamente, nos seus zig-zags típicos, através das ramadas dos pinheiros.
E a manobra recomeçou - até que, repetindo-se a mesma cena, o caçador intrigado, resolveu aproveitar, em benefício próprio, os levantes provocados pelos cães do inglês, e apanhando a galinhola de feição, tombou-a.
O inglês assistiu impassìvelmente à queda da ave e chamou os cães. O outro, julgando-se na obrigação de lhe explicar a sua intervenção e defender o seu direito de abater uma galinhola que lhe passara a alcance de tiro, dirigiu-se ao inglês que, ainda por cima, se encaminhava para a estrada, mostrando visìvelmente dar a caçada por concluída.
Mas o inglês não estava melindrado nem ofendido. Que compreendia perfeitamente; estava no seu direito. Apenas lamentava que aquêle tiro tivesse vindo roubar a ambos a possibilidade de tornarem a caçar naquêle pinhal.
- ?!!
E explicou então por sua vez:
- É muito simples. Êste ano há poucas galinholas. Esta era a única em tôdo êste pinhal. Há meses que a descobri e todos os domingos aqui venho para a caçar, sem a matar - só para gozar com o prazer de a encontrar e a satisfação de ver trabalhar os cães. Se a matasse, - como era a única - perdia a possibilidade de caçar. E por isso não lhe atirava.
O senhor hoje matou-a. Não há mais nada a fazer. Acabaram por êste ano as caçadas às galinholas neste pinhal. E como acabaram... vou-me embora.
Fez um cumprimento amável e lá se foi, a caminho de Lisboa, com a sua espingarda, os seus «pointers» e o seu cinto vasio.
Ninguém mais o tornou a ver, durante êsse inverno, a caminho do pinhal."

Os autores concluem do seguinte modo: "...é mais fácil atirar bem do que caçar bem. E quem não caçar bem reduz o desporto da caça na Metrópole, a simples matança.
Temos pois de pugnar pelo aumento do número de caçadores entre a massa dos nossos atiradores - alguns, aliás, admiráveis. E êsse número só aumentará se os preconceitos individuais e a formação superficial de uma experiência, derem lugar à observação objectiva dos fenómenos e ao estudo de regras, com sólidas bases numa luta leal entre bicho e homem."

Dizia eu que a mensagem desta magnífica obra literária mantém toda a sua actualidade, apesar de ter sido concebida há 65 anos por Henrique Galvão, Freitas Cruz e António Montêz...

Sobre o blogue

Contacto: ribeira-seca@sapo.pt
número de visitas

1 - Pertence-me e não possui fins comerciais;

2 - Transmite a minha opinião;

3 - Os trabalhos publicados são da minha autoria;

4 - Poderei publicar textos de outros autores, mas se o fizer é com autorização;

5 - Desde que se enquadrem também reproduzirei artigos de imprensa;

6 - Pela Caça e Verdadeiros Caçadores;

7 - Em caso de dúvidas ou questões, poderão contactar-me através do e-mail acima;

8 - Detectada alguma imprecisão, agradeço que ma assinalem;

9 - Não é permitido o uso do conteúdo deste espaço sem autorização;

10 - Existe desde o dia 21 de Outubro de 2006.

© Pedro Miguel Silveira

Arquivo